Esses índios aí
Antonio Prata
Garantir a sobrevivência e a terra deles é aumentar a
riqueza da experiência humana; a deles e a nossa
PRA
QUE serve o índio? Índio não colabora com o PIB, não contribui com a ciência,
não dourará nosso quadro de medalhas nas Olimpíadas e ainda é dono de Bélgicas
e Bélgicas de terra improdutiva! Esses folgados deviam era tomar vergonha na
cara, botar uma roupa, arrumar um emprego, mudar pra um apartamento de 25 metros quadrados
e passar duas horas no trânsito, todo dia, como qualquer ser humano normal, é
ou não é?!
Tirando
a ironia do apartamento e do trânsito, o discurso acima não é muito diferente
do que eu ouvi tantas vezes, na época em que cursava ciências sociais e
explicava a algum curioso do que tratava a antropologia.
Lembrei-me
dessas pérolas na semana passada, ao ler aqui na Folha a notícia de que uma
portaria da Advocacia-Geral da União prevê a possibilidade de o setor público
construir em áreas indígenas sem consultar seus habitantes. A ideia, pelo que
eu entendi, é que as reservas não sejam reservadas. Genial.
Uma
vez perguntaram a um antropólogo "por que os índios precisam de
reserva?". Resposta: "porque eles existem". Simples assim. Por
existirem, viverem da caça, da pesca, da colheita, de pequenas produções de
subsistência -e, diga-se de passagem, por estarem aqui há pelo menos 5.000
anos-, devem ter as partes que lhes cabem entre nossos latifúndios.
Que
baita desperdício! -dirá a turma do primeiro parágrafo. Debaixo das terras onde
esses pelados estão a comer pitangas há minérios valiosíssimos! Minérios
essenciais para a fabricação de celulares, por exemplo. Enquanto eles estão lá,
rezando pro grande Deus da mandioca, poderíamos estar diminuindo em 0,001
centavo o preço dos smartphones, permitindo a mais gente tirar fotos de seus
cachorros para pôr no Facebook, possibilitando que mais gente desse
"like" nas fotos dos cachorros de mais gente, contribuindo, assim,
para a grande marcha da civilização -mas esses índios...
Não,
não direi que o índio é bom e a gente é ruim, caro leitor, nem acho que um
caiapó viva necessariamente melhor do que o morador da Caiowá. Sou feliz com os
antibióticos, as séries da HBO, as cervejas artesanais e outras conquistas da
civilização. E é justamente a herança iluminista desta civilização à qual
pertenço que me obriga a concordar que, se não há uma finalidade última para a
existência, tanto faz gastarmos o tempo que nos foi dado vestidos e postando
fotos de cachorros no FB ou pelados e cantando para a mandioca. Mais ainda: é
essa mesma tradição, cujas grandes criações tanto admiro -de Hamlet ao
microchip-, que me faz lamentar o tesouro que desperdiçamos ao menosprezar os
quase 240 povos indígenas brasileiros, com suas mais de 800 mil pessoas falando
cerca de 180 línguas. Quantas Ilíadas e Gênesis, Medeias e Gilgameshs, quantos
belos poemas, cosmogonias e epopeias deixam de fazer parte do rio de nossa
cultura por preconceito e ignorância?
Garantir
a terra e a sobrevivência desses índios é aumentar a riqueza da experiência
humana. A deles e a nossa. E, mesmo que não fosse, mesmo que "esses índios
aí" não pudessem trazer nada de bom para nós, ainda mereceriam as
reservas. Porque eles existem. Simples assim.
(Publicado em Folha de São Paulo, 25 de julho de 2012)